segunda-feira, 23 de março de 2020

O VÍRUS


Esse negócio do coronavírus tem mexido bastante com o emocional das pessoas. No meu tem, acho que a mesma coisa acontece com todo mundo, não? De repente estava eu no meu canto, preocupado com minhas coisas, juntando os boletos pra pagar no final do mês e o noticiário da televisão conta de um tal vírus lá do outro lado do planeta. Bom, e eu com isso? Nada, claro. Deixa o vírus quieto lá que eu ainda nem juntei os recibos pra fazer a Declaração do Imposto de Renda. Ah, e tem a última parcela do IPVA, a fatura do cartão de crédito. Preciso comprar um tênis novo. O moço do noticiário continua aquela lenga-lenga do vírus nos dias seguintes. Ôh, meu Deus... e eu com isso? É lá do outro lado do lado de lá do mundo!!! Cadê as notícias do meu time, quero saber se ganhou ou se perdeu, ora essa! Mas o moço da notícia não parou nos outros dias também. E eu não juntei os recibos, paguei a parcela do IPVA e a fatura do cartão, nem vi o preço do tênis e quando me dei conta o vírus estava quase na porta de casa. Foi uma coisa estranha porque, de repente, tudo veio muito rápido, as notícias, o vírus, o primeiro doente, a confirmação, a primeira morte e depois outra e mais outra. E o moço da notícia falava pra se ter cuidado, dizia pra que lavássemos as mãos, que não era pra ter contato com outras pessoas. E a vida foi seguindo até que a coisa começou a apertar mais e mais. Ninguém falava em outra coisa senão no vírus. Os números de infectados aumentava e os óbitos também. Começaram as tabelas, os percentuais, as comparações com outros países e nesse emaranhado todo, começaram as restrições ao comércio e às pessoas nas ruas. Fomos todos encorajados a ficar em casa, a trabalhar de casa, a planejar nossa vida de casa, a ficar em casa por ficar em casa. No princípio ninguém entendeu nada, as escolas sem aula, as ruas desertas, as piscinas vazias, as lojas fechadas, os carros parados. Todos nós confinados para não espalharmos o vírus, um protegendo o outro, numa solidariedade jamais pensada... eu não me contamino e não contamino ninguém. Ninguém põe vírus em ninguém. E de repente nos tornamos prisioneiros de uma situação inusitada para todos mas pudemos libertar outros sentimentos dentro de nós. Digo por mim mas senti algo bem semelhante com quem conversei: passamos a pensar no outro, a nos colocar um pouco no lugar do outro. Várias noites eu aqui, na segurança da minha “prisão” ficava olhando o caminhão da coleta de lixo e via aqueles garis pegando os nossos restos e jogando na caçamba. E eu pensava “caramba, eu estou aqui protegido mas aqueles caras, não!” Eu observava o trabalho deles e ficava imaginando o trajeto deles até a empresa, de trem, metrô, ônibus – quem sabe mais de um. Eles sim, expostos o tempo todo ao perigo de contágio para nos servir. E como eles, outros tantos... motoristas, policiais, bombeiros, médicos, enfermeiros, a caixa do supermercado... uma série de profissionais dos quais dependemos todos os dias e não nos damos conta, não damos valor a eles. Agora que estamos todos neste isolamento social, com medo – literalmente – da morte, o dinheiro de cada um não importa mais. Você pode ter muito dinheiro ou quase nenhum, se o vírus o contaminar, seu patrimônio não valerá nada, meu caro... a luta vai ser de um conta o outro. Num leito de hospital nenhum amigo vai ajudar, quebrar seu galho ou facilitar o que quer que seja. E é por isso que resolvi escrever isto agora, porque geralmente não perdemos tempo para verbalizar aquilo que queremos e certas coisas não devemos deixar para depois. Eu também estou com medo. Não queria estar aqui nesta clausura que, embora com conforto, não me permite andar ou estar com quem eu desejo. Eu queria passear no corredor de algum shopping, parar para tomar café com minha amada, ir ao cinema, comentar depois sobre o filme, levá-la pra casa e combinar um vinho na próxima sexta-feira, comprar queijos com carinho porque sei quais ela mais gosta. Queria andar despreocupado, de mãos dadas pela rua, observando cada placa de trânsito para transformar em poesia mais tarde, queria rir da criança tentando se equilibrar na bicicleta. Queria comprar meu tênis. Queria pedir desculpas, mais uma vez, pela briga que tivemos na semana anterior, uma bobagem que não teve sentido mas a deixou magoada, queria dividir o guarda-chuvas para não deixar que seu cabelo se molhasse, queria ouvir seu sorriso e olhar no seu olhar segundos antes de um beijo. Mas antes de mais nada, quero que este pesadelo termine, que todos nós guardemos essas estórias todas pra contar aos nossos netos e dizer a eles como nos tornamos mais fortes na adversidade e aprendemos na apreensão e no sofrimento. E se ficamos assim por causa de um inimigo minúsculo e invisível, não há mais como duvidar que exista um Ser Maior, invisível também mas enorme e repleto de amor – e que você pode chamar como quiser porque eu tenho certeza que Ele não vai se importar nem um pouco...