quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

VITÓRIO

Eu nasci no final dos anos 50, no Butantã, região Oeste de São Paulo. Se hoje ainda é um local bastante arborizado da cidade, imaginem naquela época! As pessoas também conservavam mais o meio ambiente: plantava-se muitas flores nos quintais, nos jardins das casas. Uma casa não era só concreto, só tijolo: a área verde era um padrão impositivo.

Na minha casa não era diferente. Meu pai gostava muito da Natureza. Tínhamos várias árvores frutíferas no enorme quintal que, se não davam frutos era por teimosia delas mas não por descuido, por falta de atenção. No jardim havia algumas palmeiras e várias roseiras que eram o grande xodó da minha mãe – ela adorava rosas. Confesso que poucas vezes vi rosas tão grandes e perfumadas.

É claro que cuidar disso tudo exigia olhares de alguém acostumado. Meu pai conhecia um jardineiro, o italiano Vitório – ou Vitorino, como ele o chamava. Lembro-me muito bem dele. Era bem alto e muito magro, o rosto comprido com a barba sempre por fazer e um esboço de bigode do qual ele não se desfazia. Os poucos cabelos brancos na cabeça eram cobertos por um chapéu de palha que ele só fazia breve menção de retirar ao cumprimentar alguém. Sua voz, de um timbre metálico trazia um sotaque que, nos meus cinco ou seis anos de vida me parecia estranho – sei hoje que ele misturava Português com o Italiano, sua língua natal. E era ele que fazia, periodicamente, o serviço de jardinagem lá em casa.

Vitório chegava cedo e eu, sabendo de antemão que ele viria, acordava mais cedo ainda para ficar em sua companhia. A destreza dele com aquelas ferramentas cortantes chocava um pouco; a enxada trazia grande quantidade de mato e minhocas! Quando ele utilizava umas tesouras estranhas para podar as flores eu ficava pensando se aquilo não machucava as pobres e indefesas plantas. No começo eu saía correndo chorar ao lado da minha mãe e acusava: “O Vitório está machucando as plantas...”. Com sua exemplar paciência, minha mãe explicava que ele estava, na verdade, proporcionando um ambiente melhor para elas viverem. De longe eu ouvia a risada do Vitório, que me chamava para explicar que ele tirava as partes doentes da planta para que outra sadia brotasse. Eu ouvia aquilo meio desconfiado mas notava que em questão de semanas um outro galho já se projetava no lugar do que havia sido retirado. Compreendi, então, que Vitório não mentia e passei a acompanhá-lo com mais entusiasmo cada vez que ele vinha.

Sempre paciente, conversava comigo o tempo todo, dizendo o que e como iria fazer alguma coisa. Parava de vez em quando e tirava do bolso alguns apetrechos para confeccionar seu cigarrinho de palha. Cortava um pedaço do fumo e picotava mais e mais com um canivete na palma da mão até que ficasse em pedaços muito pequenos, muito pequenos. Depois pegava uma palhinha retangular e nela espalhava o fumo picado, enrolando delicadamente até que o cigarro tomava forma. Apertava bem para que não se deformasse e uma estratégica lambida na palha, na última volta, fazia com que a ponta colasse ao corpo daquele tubo. Um isqueiro prateado fornecia a chama necessária e logo o ambiente em volta tinha o cheiro característico do fumo. Aquilo não me incomodava; pelo contrário, eu ficava esperando aquele momento porque era mesmo um ritual e enquanto isso, Vitório conversava comigo, brincando ou me mostrando brotos de flores ou pequenos animais que viviam no meio da vegetação. Com ele eu aprendi a respeitar o tempo das plantas, que havia necessidade de cuidados para que tudo se desenvolvesse de maneira saudável e que o velho sempre dava lugar ao novo.

E assim eu me acostumei ao velho Vitório cuidando das nossas plantas, tratando as flores que ficavam sempre viçosas. Eu já estava no fim da adolescência quando ele parou de trabalhar. Já aposentado de seu emprego e com o corpo cansado da lida constante, resolveu se recolher ao seio de sua família.

Já adulto, um dia minha mãe me perguntou:

- Sabe quem esteve aqui hoje?

- Nem imagino... quem?

- O Vitório!

- É mesmo? E ele, está bem?

- Ele veio se despedir...

- Como assim? Vai voltar para a Itália?

- Não entendi muito bem... Ele falou que estava se despedindo das pessoas porque não passaria outro Natal aqui.

Algumas semanas depois, soubemos que Vitório havia morrido. Não teve como não sentir um baque. Aquele homem que me conheceu criança e havia me ensinado tantas coisas sobre a Natureza que ele entendia tão bem, havia ido embora mesmo. E teve a delicadeza de vir se despedir, de agradecer o tempo de convívio.

Ainda hoje me recordo daquele semblante com palavras gentis comigo, daquele sotaque a que me acostumei tanto e de seus olhos mansamente verdes olhando-me sempre com paciência.

Você me ensinou muito, Vitório – e não me esqueço de que 'o velho precisa dar lugar ao novo'.



sexta-feira, 15 de outubro de 2021

 

A ESCOLA


Fazia um tempo insuportavelmente quente e seco. O reflexo do sol no chão chegava a doer nos olhos e eu não me sentia confortável. Caminhava ao lado de minha mãe que conversava comigo, me encorajando. Era esquisito, eu estava de calça curta azul marinho, camisa branca e gravata – eu não gostava de sair de calça curta à rua. O cheiro do banho recém tomado ia embora rapidamente pelo tanto que eu suava. Nem mesmo a poeira da rua de terra se levantava: o ar estava absolutamente parado. Eu tentava me distrair com várias coisas pelo caminho: algum pássaro que cruzasse o céu, poucos carros que passavam, flores nos jardins das casas. Pensei que o caminho pudesse ser mais longo para demorar bastante. Não era. Chegamos.


Nunca tinha visto tantas crianças juntas, num falatório ensurdecedor. Elas estavam alvoroçadas, pareciam ansiosas e alegres, à vontade. Entramos pelo grande portão e minha mãe me levou até uma senhora negra, de cabelos grisalhos e sorriso simpático. Era minha primeira professora, meu primeiro dia de aula. Dona Haidè me recebeu com imenso carinho, abaixou-se para me abraçar com ternura. Seus olhos eram azuis de uma tonalidade bem clara e inexplicavelmente ternos. Eu não sabia como corresponder àquilo porque não tinha em casa demonstrações exteriorizadas de afeto. As duas se despediram e vi minha mãe se afastar enquanto me dedicava um sorriso e um aceno de mão. Uma sensação estranha me invadiu, não era bem vontade de chorar mas senti uma dor no estômago, uma secura repetina na boca e uma profunda tristeza. O prenúncio de choro viria muitas outras vezes no decorrer daquela tarde, a cada nova situação que eu era obrigado a enfrentar. Tudo para mim era novidade: aquele amontoado de crianças, a professora – uma desconhecida mandando em mim! - a lousa enorme, escura e assustadora, o giz branco que de maneira mágica marcava contornos... Passei a observar melhor meu universo. A sala era grande, de teto muito, muito alto. Janelas igualmente generosas através das quais era possível observar a copa de muitas palmeiras do lado de fora, as nuvens brancas num céu muito azul. A porta tinha um visor, um quadradinho de vidro que permitia às freiras (mantenedoras da escola) dar uma espiadinha de vez em quando, controlando a classe. O soalho de tábuas largas fazia o ruído característico quando se pisava nele; não era encerado mas era de cor clara e o uso continuado de anos e anos fazia com que parecesse tão circunspecto como todo o resto. As carteiras eram de madeira, parecidas com aqueles antigos bancos de praça, ripados. Em cada uma delas sentavam duas crianças. No meio da carteira um furo atravessando o tampo: era o lugar para se colocar o tinteiro para as classes mais avançadas. Olhei para meu colega de carteira, meu primeiro colega de estudos. Ele havia tido paralisia infantil e seus movimentos eram difíceis, lentos; mal conseguia segurar o lápis que teimava em escorregar de seus dedos. Andava também de forma débil e ao falar nem todos entendiam. Eu me identifiquei com ele e nos tornamos grandes amigos, situação essa que perdurou na vida adulta. Pequenos, assustados e ingênuos, trocávamos nossas impressões acerca da escola, dos colegas, da professora...e prestávamos assim um auxílio mútuo desinteressado e produtivo.

Aquela tarde se arrastou penosamente até o horário do sinal. As crianças saíam das classes numa correria desenfreada. De longe vislumbrei a figura conhecida, simpática e amorosamente branda de minha mãe, que sorria. Senti um alívio imenso. Voltamos para casa e agora quem falava muito era eu, contando tim-tim por tim-tim de uma experiência que, reservadas as devidas proporções, iria se repetir muitas e muitas vezes no decorrer da minha vida.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

A BEXIGA AMARELA


Eu tinha lá meus cinco ou seis anos. Início dos anos 60. Meu pai era muito mais velho do que eu, devia andar lá pela casa dos cinquenta e quatro, cinquenta e cinco anos. Já me recordo dele parcialmente calvo, com os cabelos todos brancos. Certa vez ele comentou em casa que não sairia mais comigo porque as pessoas brincavam: “é o netinho, seu João?” Mas ele gostava da minha companhia – e eu da dele. Para todo o lado que ele ia, lá estava eu junto...


Lembro-me que era um domingo. Tínhamos ido à venda do seu Manoel, comércio de secos e molhados perto de casa. No outro lado da pracinha, um homem vendendo balões de gás. Fiquei olhando maravilhado para aquelas bolas coloridas magicamente suspensas no ar, balançando... balançando...


Meu pai deve ter notado meu olhar de admiração e lá fomos nós em direção ao vendedor. “Escolhe uma”, disse ele. Fiquei extasiado com aquela oportunidade. Na verdade eu queria todas! Fixei-me numa amarela – acho que me pareceu mais simpática – e então o homem a desamarrou do feixe para entregá-la a mim.


Peguei a bexiga todo feliz e observei que ela não pesava nada, não precisava de nenhum esforço para segurá-la. Para pegar a carteira e pagar o brinquedo, meu pai colocou no chão a sacola que carregava e pediu para que eu sustentasse as alças de forma a não derrubar as compras que havia feito na vendinha.


Sempre obediente, fiz o que ele mandou, segurando as alças da sacola de lona. Assim que ele pagou o homem e se voltou para segurar a sacola, indagou: “Ué, cadê a bexiga?”. Eu apontei para o alto, vendo meu balãozinho amarelo se projetar lentamente para o firmamento. Eu havia soltado o barbante para atender ao pedido do meu pai para segurar a sacola...


Com paciência ele pediu outra bexiga e desta vez a amarrou em meu pulso. Fomos embora, meu pai, eu e a bexiga. Quando chegamos em casa, minha mãe fez a maior festa, elogiando meu presente... mas no fundo eu me sentia encabulado, triste mesmo.


De alguma forma, eu havia perdido a bexiga original, causado prejuízo e desperdiçado uma chance. Para atender meu pai, tinha perdido algo meu – e a outra não substituiu a primeira. Eu não queria as duas, queria somente aquela que havia ido embora... aquela que eu havia escolhido entre todas as outras.


Essa sensação de perda, de substituição forçada me acompanha até hoje e a cada sonho que se desfaz, fico pensando onde estará a minha bexiga amarela...