Nasci num outro Brasil, finalzinho dos anos 50. Não cheguei a viver os Anos Dourados mas minha infância se passou nos anos 60 – peguei só uns reflexos daquele brilho todo.
Tive a grata felicidade de conhecer dois “brasis”: um atrasado de tudo, refém de muitos costumes herdados ainda do Império e outro, tecnologicamente avançado mas com conceitos sociais no mínimo discutíveis.
Sou do tempo do leite em litro de vidro e tampinha de alumínio, do coletor de lixo com carrocinha puxada a cavalo, da Praça Ramos de Azevedo com piso de paralelepípedo, dos gatos que habitavam os baixios do Viaduto do Chá, do bonde na Dr. Arnaldo, do Mappin, da Eletroradiobrás e da Peter, da televisão em preto-e-branco. Assisti aos Festivais da Canção, vi A Banda ganhar e Sérgio Ricardo quebrar o violão e atirar na platéia, aprendi a gostar de Caetano Veloso e Gilberto Gil, me apaixonei pela beleza inocente da Rita Lee.
Prestei exame seletivo para cursar o ginásio em escola do Estado. Estudava muito e me divertia pouco – como era comum à época. Havia menos cinema e mais sabatinas, menos jogo de bola e mais notas azuis na caderneta. Tínhamos uma outra consciência, sabíamos que deveríamos estudar muito para trilhar um caminho de sucesso. E lá vinham os textos em Francês, verbos em Inglês, oração subordinada adjetiva em Português, tabela periódica de elementos em Química, fórmulas de Física e equações imensas de Matemática. Quanto vale o x se a raiz do delta é b2 – 4ac? Em quanto tempo um tanque de mil litros ficará cheio se a torneira o completa a tanto e um ralo o escoa à vazão de quanto? Afluentes do rio Amazonas, invasão holandesa na Bahia, Machado de Assis e José de Alencar. Velhos e bons tempos...
Foi, então, com um misto de espanto, incredulidade e revolta que acompanhei pelo noticiário da última semana, a existência de um livro aprovado pelo MEC que enaltece o modo errado de se falar, numa pretensa valorização de cultura do povo. Segundo o que foi divulgado, não existe mais o certo e o errado, vale o adequado e o inadequado, alertando ainda sobre um certo preconceito linguístico, dependendo de onde se fala dessa maneira.
Não resta dúvida que todos na Sociedade precisam, merecem respeito mas a inversão de situações é um caminho que não leva a lugar algum. Não é o falar errado que surrupia credibilidade ao cidadão mas estimular o erro é lamentável. É claro que não se pode exigir que uma pessoa sem cultura declame Camões mas o mínimo aceitável é que ela fale com todos os plurais, flexionando corretamente os verbos... além de ser elegante guinda qualquer um a outro patamar. Podem falar o que quiserem mas até mesmo quem não sabe se expressar direito gosta de ouvir uma pessoa culta discursar - e para isso não é necessário usar nenhum vocabulário rebuscado: basta ser claro e objetivo.
Desta vez o alvo foi a Língua Portuguesa, talvez amanhã seja a Matemática e depois a História - olha que perigo!
Eu me senti lesado com a publicação desse tal livro e sua inexplicável aceitação pelo MEC pois percebo que tudo o que estudei - eu e milhares de pessoas - foi jogado no lixo. Nós nos esforçamos à toa? Por certo, não...
Fiquei imaginando como será, então, este País no futuro. Teremos uma Sociedade totalmente despreparada, sem memória, sem história. Os valores culturais não existirão e as pessoas terão destaque apenas pelos bens materiais. Se alguém destoar disso será tido como preconceituoso e sofrerá punições. Quem for mais inteligente será perseguido. Aos poucos esse falar errado que hoje é cultuado será substituído por gestos e grunhidos, expressão máxima da interiorização humana.
Algo me diz que talvez Pierre Bouller não estivesse errado quando escreveu La Planètte des Singes...