sexta-feira, 30 de março de 2012

O Velório

A sala não era grande. As cadeiras tomavam as paredes laterais, concentrando-se para o meio. Na parede do fundo um pedestal com um crucifixo e muitas velas disputando o destaque com as imensas coroas de flores. No centro, o caixão.
As pessoas foram chegando devagar, muito quietas. O passo diminuía à proporção em que se aproximavam do esquife: parece que não queriam ver o defunto mas o faziam como uma espécie de obrigação macabra. Alí paravam e mantinham o olhar fixo, perdido, sussurrando baixinho frases que ninguém entendia.  Soluços, choro abafado, consternação.
Sinésio estava morto.
Ninguém acreditava naquilo. Como podia?
- Infarto fulminante – comentou alguém – Trabalhava demais, muita preocupação, responsabilidade, essa agitação de vida moderna...
Os amigos se reuniam em grupinhos para relembrar os momentos vividos na companhia dele. Bom colega, excelente profissional, competente, querido por todos.  Um futuro brilhante pela frente... agora ali, inerte!
Assim iam as conversas quando, de repente, irrompia um choro compulsivo aqui e ali. O ambiente era de tristeza, inconformismo.
Vanessa não saía do lado do caixão. Ela era uma das melhores amigas, daquelas sempre presentes, conselheira, cúmplice mesmo. Fora a perda irreparável, não suportava ver o sofrimento dos outros colegas.
Teve uma idéia. Foi a uma farmácia próxima e comprou um calmante que, diligentemente, misturou a um inocente chazinho de camomila que preparou na copa. Muito simpática, foi oferecendo a bebida a todos.
O resultado foi o esperado. Aos poucos as pessoas foram ficando mais calmas, mais descontraídas. Já não se ouviam mais os lamentos e as crises de choro. As conversas foram ficando mais normais. Aqui e ali já se escutava uma piadinha, risinhos contidos. Começaram a se acomodar do lado de fora onde a conversa podia rolar mais solta.  De vez em quando se ouvia uma gargalhada. O papo tomou um outro rumo, as estórias do morto começaram a ser contadas num outro tom; ele já não era assim tão santo e nem tão trabalhador. Colegas do escritório começaram a lembrar de como ele costumava empurrar suas tarefas para os outros.  Pequenos empréstimos de dinheiro não pagos já lhe rendiam a fama de caloteiro e alguém lembrou de uma excursão à praia em que ele e Vanessa sumiram, só aparecendo tarde da noite porque haviam “se perdido” no caminho. Mulherengo, tinha o péssimo hábito de paquerar até as namoradas dos amigos. Um sem-vergonha.
De um instante a outro, Sinésio tinha perdido o trono.
A sala, agora, estava quase vazia, só os parentes ainda permaneciam firmes. De quando em vez um grupinho de amigos entrava e revezava com outros, só para não ficar muito chato.
E assim foi até a hora do enterro.
Vanessa ainda visita o túmulo do amigo. Fica lá alguns instantes pensativa e vai embora, deixando sempre um vasinho de rosa-da-índia que, inexplicavelmente, aparece completamente seco no dia seguinte...

sexta-feira, 2 de março de 2012

A Vaca

Imagine que você tem uma vaca. Você vai lá todas as manhãs, faz a ordenha e consegue seus cinco, sete litros de leite. Você aproveita esse leite e a vaca fica lá.
No dia seguinte você faz a mesma coisa: nova ordenha, mais leite. A vaca continua lá, quietinha. 
Semana após semana a rotina se repete: você tira o leite, o consome. E a vaca? A vaca permanece lá, bonitinha, pastando alegremente na sua propriedade. Você usa o leite para beber, fazer queijo, manteiga, sorvete e a vida vai passando.
Um dia você começa a achar que só o leite não é suficiente porque, afinal de contas, faz tempo que você não come um bom churrasco. Você olha bem para sua vaca e decide abatê-la para aproveitar a carne. Ou vai ficar tomando só aquele leitinho todo dia?!?
Você, então, providencia o abate, faz a separação das peças, embala e coloca num freezer. Aos poucos você vai consumindo aquilo tudo. Faz uma picanha, uma paleta, tira uma peça de alcatra, maminha, filet mignon... que coisa boa!  Tem lá uns 400 kg de carne – é carne que não acaba mais!
Acaba, sim.
Um dia, quando você menos se dá conta, pegou o último pacotinho de costela. O freezer está vazio. E a vaca, cadê? A vaca não está mais lá.
O que foi que aconteceu? Aconteceu que você consumiu o principal e, agora, não tem mais de onde tirar coisa alguma.
Pode parecer um plágio de Esopo com a fábula da galinha dos ovos de ouro mas é sempre bom contar a estória com outra roupagem pois a ganância do ser humano não muda.
Quantas vezes você escutou o relato de alguém que ganhou um dinheiro inesperado ou vendeu um imóvel e resolveu viver daquela renda e, de repente, acabou mais pobre do que antes?
Se você receber uma bolada assim, sem esperar, cuidado! Lembre-se da teoria da vaca. Há pessoas que não têm muita paciência para aplicar esse dinheiro, reaplicar os rendimentos para engordar o principal. Ou então, acham que esse percentual mensal é pouco – muito ralo – e preferem ir consumindo o principal aos pouquinhos, em pequenos prazeres, até que se acabe. Aí não terão nem o rendimento - o leite - e nem o capital - a vaca.
Pensa bem... melhor uma vaca no chão do que duas voando.