sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Musa

Demorara um pouco, mas Amaury conseguira colocar sua vida em ordem. Os primeiros meses na nova condição de divorciado devolveram-no à rotina de homem solitário. Preferia ficar em casa; uma angústia sufocante o invadia. Não confiava em ninguém. Raramente saía e quando o fazia era sempre sozinho, perdera o entusiasmo para novas aventuras. O casamento, sem dúvida, havia sido uma experiência trágica mas preferia cada vez mais afastar aquilo de suas lembranças. Gastava suas noites assistindo filmes que alugava às dezenas, fumando sem parar e assaltando a geladeira de quando em vez.

Tinha um certo trauma no relacionamento a dois. Nunca conseguira entender o modo como as mulheres pensam. Por mais que tentasse se esforçar, sempre era exigido em alguma coisa a mais – e nunca soubera o que era essa tal “coisa”. Se não dava atenção, era tido como distante, omisso; quando se dedicava integralmente à amada, era olhado com desconfiança. Certa vez, num aniversário de casamento, deixou deliberadamente que o dia transcorresse sem demonstrar nada, nem ao menos um telefonema. À noite, levou um buquê de rosas – as mais vermelhas que conseguiu encontrar. Sorriso franco, estendeu à mulher o regalo e teve como resposta um olhar pesado e o comentário “o que você andou fazendo de errado para querer me comprar com as flores?”. Decididamente fora um balde de água fria: ela é quem esquecera da data...

Agora, entretanto, tudo era diferente. Avesso a novas aventuras, teria o maior cuidado para se envolver novamente. As próprias amigas o chamavam de “difícil”, argumentando que ele sempre escapava liso como um sabonete de um compromisso, fosse qual fosse. Era arredio, pouco falava, enfiado num ostracismo clássico.

O tempo, entretanto, bálsamo para todos os revezes da vida, foi mudando seu estilo de comportamento. Percebeu, num dado momento, que não era aquela, exatamente, a vida que queria para si; não valia a pena se isolar. Passou, então, a experimentar uma sensação de liberdade, de espaço. Ganhou coragem para se impor novamente. Começou a brotar nele a necessidade de companhia, de sair e fazer novos amigos.

Uma noite, enquanto fazia algumas compras num supermercado, compenetrado somente na escolha de seus molhos prediletos, teve sua atenção despertada por uma figura que parecia saída das páginas de uma revista. Alta, morena, bem feita de corpo, gestos discretos e encantadores. Sem dúvida, era ideal para preencher o vazio de sua vida tão monótona. Devia ser bem interessante.

Embalado pelo perfume místico daquela musa e apenas para ficar bem perto dela, encheu o carrinho com várias coisas que não precisava. Arriscou um olhar direto para ela diante da prateleira de congelados e jogou um sorriso maroto: foi correspondido no olhar que o pegou em cheio. Uma conveniente espiadela em suas mãos revelou unhas muito bem cuidadas e vários anéis mas – reparou bem – nenhuma aliança. “Ótimo”, pensou. Mas como forçar uma apresentação? Nunca fora dado a ataques diretos, era até meio tímido. Lembrou-se, então, de uma cena que vira num filme certa vez e decidiu usar a mesma tática.

Quando a moça se dirigiu ao caixa, ele foi em seguida. Tentou aparentar naturalidade, notando que agora ela o observava com o canto dos olhos. Alí sentiu confiança, daria certo! Quando ela abriu a bolsa e pegou o talão de cheques, pensou: “É agora! Anoto seu telefone e ligo depois.” Espichou o olhar enquanto ela preenchia o cheque; seu braço na frente impedia que visse o nome mas precisava saber! Seu coração batia descompassadamente enquanto um friozinho invadia suas entranhas. Concluída a assinatura, chegou mais pertinho ainda para ver o nome impresso na folha do cheque e viu: Dagoberto de Almeida Barros. Um sentimento esquisito invadiu sua cabeça, algo entre a perplexidade e a ira. Não acreditou no que presenciava mas a entrega da Cédula de Identidade não deixou dúvidas. “Ela” ainda forneceu à mocinha do caixa, em alto e bom som, o telefone, enquanto enviava um sorrisinho provocador.

Naquela noite, Amaury não parava de se maldizer intimamente, enquanto assistia 9 ½ Semanas de Amor, tomando boas doses de uísque e sem saber direito o que fazer com os três quilos de camarão que, sem perceber, comprara no supermercado...

Nenhum comentário: