sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Fantasma da Estação

Meu pai tinha muitas estórias, que nos contava invariavelmente à luz de velas... é que quando acabava a energia elétrica no bairro – o que era muito comum nos anos 60 – nós, os filhos, formávamos uma roda à volta do meu pai e da minha mãe para ouvir relatos. Todos sempre eram contados mais de uma vez mas nossa expectativa quanto ao final deles não mudava, ficávamos presos na narrativa, prestando singular atenção aos detalhes, a luz bruxuleante das velas crepitando imponentes. Eu sempre tive a impressão de que aquelas velas duravam mais porque queriam escutar o resto da narrativa.

Não eram relatos ao acaso. Ele nos contava fatos reais, acontecidos com ele no decorrer da vida. Um dos que eu mais gostava era de quando ele, na mocidade, trabalhava na estação ferroviária de Pirajú. Não sei ao certo que cargo ele exercia, talvez fosse Chefe de Estação, algo assim. O fato é que, pelo menos à noite, ele trabalhava sozinho e entre outras coisas era também responsável pela mudança dos trilhos para que determinada composição seguisse este ou aquele destino. Esse desvio dos trilhos era feito manualmente, por intermédio de uma alavanca acionada de forma mecânica. Naquele tempo – final dos anos 20, início dos anos 30 - a comunicação entre as estações ferroviárias e as composições era feita por telégrafos. Assim, meu pai podia saber a que horas precisava virar a tal alavanca para desviar determinado trem. Como existia um único ramal de trilhos, isso era de extrema responsabilidade pois uma falha no desvio poderia provocar um acidente, colocando dois trens em rota frontal de colisão.

Numa determinada noite, a atmosfera estava lúgubre. A lua, encoberta por grossa camada de nuvens, deixava transparecer somente uma tênue lembrança de sua luminosidade. Talvez fosse Primavera porque fazia um pouco de frio e o vento gelado varria a plataforma vazia. A luz artificial, precária pela própria condição da época, provocava uma penumbra e as sombras eram mais evidentes do que a própria claridade.

A madrugada avançou. Em dado momento, o telégrafo começou seu matraquear. Na mensagem, o aviso para que meu pai invertesse a chave do desvio. Dalí a alguns instantes passaria uma composição de passageiros e no sentido inverso vinha um trem de carga. Não era uma operação complicada, ele já tinha feito isso muitas vezes; exigia somente atenção – era uma tarefa que tinha que ser feita.

Meu pai, então, se preparou para sair e acionar a alavanca de desvio, que ficava alguns metros adiante, ao longo da ferrovia. Ainda na plataforma, seu coração ficou em sobressalto; sentiu seu sangue congelar. Ao lado do mecanismo de desvio dos trilhos, estava um vulto branco, esticando os braços em sua direção, chamando-o insistentemente. Ficou apavorado e não conseguia dar um passo, enquanto a grotesca figura continuava a chamar... a chamar... a chamar...

Sua vontade era abandonar tudo e sair dalí mas pensava nos passageiros do trem que se aproximava e no terrível acidente que ocorreria caso ele não invertesse os trilhos. O lugar êrmo, a escuridão, a lua encoberta, o vento gelado e um personagem agitando os braços, chamando desafiadoramente.

A responsabilidade, é claro, falou mais alto e ele caminhou a passos largos, indo ao encontro da chave de inversão dos trilhos e também daquela figura medonha, fantasmagórica.

Ao chegar mais perto, pôde perceber o que ocorria. Talvez trazido pelo vento, um enorme pano branco ficara enganchado numa árvore próxima: o vento fazia com que as pontas se agitassem, parecendo dois braços chamando meu pai.

Aliviado, ele inverteu a chave dos trilhos, tirou o pano da árvore e voltou ao seu posto na Estação. Dalí a alguns minutos surgiu ao longe a composição que levava os passageiros, em condições totalmente seguras, a seu destino.

Eu gostava – e gosto – desta estória porque reúne elementos diversos, a apreensão, o imaginário, o medo e a realidade. Muitas vezes na minha vida lembro disso, estudando bem cada situação para ver se não se trata de algo mal compreendido, de um engodo favorecido pelas circunstâncias. O que mais admirei sempre, entretanto, foi a coragem do meu pai, superando seus próprios limites porque de seu ato dependia a vida de outras pessoas. Para mim, ele foi o grande personagem nesse episódio, desvendando o mistério do Fantasma da Estação.

2 comentários:

masettos disse...

pois é ..reinaldo.....
já se foi o tempo de nos reunirmos em volta da mesa e poder saborear a histórias inventadas ou não....dos mais velhos...que aguçavam a nossa imaginação.

parabéns pelo texto.

luiz

Unknown disse...

Sinto falta disso sabia? Ouvir histórias. Melhor ainda quando bem contadas como foi o seu caso, alías, reproduzindo e bem as do seu pai.Hoje a gente não ouve mais histórias e sim papos furados e na maioria das vezes desprovidos de qualquer conteúdo. Bom se o papo furado..não tem conteúdo mesmo não é? Fui redundante. Valeu o texto.Muito bom! bjs